Terça-feira, 25 de agosto de 2015
Texto: Luiza Moraes

Foto: Francisco Ramos Proner. Espetáculo SACCO E VANZETTI / temporada 2015
Muitos tem acompanhado e se solidarizado com nossa luta em defesa da manutenção do Armazém da Utopia. Desses muitos, é grande o número de companheiros que conheceu a Companhia Ensaio Aberto através de seus trabalhos mais recentes. Para os que querem conhecer melhor nossa trajetória de mais de 20 anos, segue o relato de Luíza Moraes, uma de nossas companheiras. Luíza é mais jovem que a Ensaio Aberto. Mas sendo filha dos seus fundadores, pode-se dizer que nasceu entre figurinos, cenários e ensaios. Tem portanto, o olhar único e particular da criança que cresceu acompanhando muito dessa jornada, unido a jovem atriz de hoje que mergulhou fundo na militância artística-política que é a marca da Companhia Ensaio Aberto. Segue abaixo o seu relato sobre a Companhia Ensaio Aberto, o Armazém da Utopia e nossa situação atual.
SOBRE A COMPANHIA ENSAIO ABERTO
A Companhia Ensaio Aberto, desde seu início, há 23 anos atrás, teve como alicerce a retomada do teatro épico no Brasil e a superação da forma dramática. Sabemos que todo teatro é político, visto que tal palavra refere-se à todas as atividades humanas que são de interesse público. No entanto, a maior parte não se assume como tal - o que também é uma posição política. A Ensaio Aberto, todavia, sempre assumiu seu caráter político e de esquerda. Utilizar a cultura como arma de transformação social é nosso objetivo principal.
Como Iná Camargo Costa diz, "forma é conteúdo solidificado", por isso nossa proposta é, não reproduzir um modelo formal de "teatro épico", mas sim dialogar dialeticamente com a tradição para fazer algo novo a cada espetáculo. Por isso temos espetáculos em formatos muito distintos. Já há algum tempo preferimos dizer - em vez de teatro épico ou teatro político - que fazemos um teatro dos trabalhadores. Um teatro dos, pelos, sobre e para os trabalhadores. Um teatro onde o centro deixa de ser o indivíduo e passa a ser o complexo das relações sociais.
Assumir-se político significa que não produzimos mero entretenimento, mas isso não quer dizer que nossos espetáculos sejam mórbidos. Ao contrário, temos no repertório vários naipes de espetáculos: alguns de teatro documento, outros com um pé no teatro popular, no teatro de feira e inclusive cabarés. Como Brecht gostava de dizer, "o teatro deve divertir, resta saber que tipo de diversão nos interessa". Bem como o dramaturgo alemão, queremos espectadores despertos e que possam refletir e tirar conclusões por si mesmos e queremos sim que o espetáculo seja ao mesmo tempo uma fonte de diversão.
Nosso repertório hoje conta com Cemitério dos Vivos; Pierrô Saiu À Francesa; A Missão; Cabaré Youkali; Bósnia, Bósnia; O Noviço; A Mãe; O Interrogatório; Companheiros; Filhos do Silêncio; João e Rosa; Morte e Vida Severina; Missa dos Quilombos; Dom João VI; Havana Café; Olga Benário - um breve futuro; Estação Terminal; Sobre O Suicídio; A Pedra do Cais; 7 Sentimentos Capitais - corpos e cidades; e Sacco e Vanzetti. Muitos desses com mais de uma montagem em vários anos. Alguns apresentados em diversas partes do Brasil, como a Missa dos Quilombos e o 7 Sentimentos Capitais e inclusive com temporadas no exterior, como Companheiros, Morte e Vida Severina, Estação Terminal e Missa dos Quilombos. Este último ficou em cartaz por mais de uma década e tornou-se um símbolo do nosso trabalho. Em 2014 fizemos a exposição O Golpe 50 Anos Depois - Memória, Verdade e Justiça e o espetáculo Sacco e Vanzetti, que é nosso mais recente trabalho e esteve em cartaz ano passado e novamente este ano.( estamos na luta para voltar aos seus praticáveis em breve.)
Fundada em 1993, os integrantes de seu núcleo já mudaram quase totalmente. Hoje, há apenas dois dos fundadores participando ativamente, Luiz Fernando Lobo e Tuca Moraes. Alguns integrantes estão juntos há anos e outros há menos tempo. Entretanto, a Companhia se propõe a tornar-se uma cooperativa e descentraliza cada vez mais o poder da mão dos fundadores, de modo que - embora não de direito - ela é de fato de todos os trabalhadores do nosso cotidiano.
Desde 2010 a Companhia Ensaio Aberto ocupa o Armazém da Utopia - Armazém 6 do Cais do Porto - por meio de um acordo político. Utopia, como o próprio nome indica, é aquilo que não tem lugar. Por isso, procuramos fazer do Armazém um espaço destinado à arte, à cultura e aos movimentos sociais. O Armazém e a Companhia entendem que a cultura é capaz de promover transformações e por isso consideram essencial a existência desse espaço de redemocratização cultural. Utopia é mais do que a denotação, até um pouco pejorativa, que lhe foi atribuída de "sonho inatingível". Utopia, como diz o Galeano, é aquilo que nos faz caminhar, ou seja, o que nos motiva. A utopia reside em todos os homens que lutam para realizar aqui e agora o ideal de plena humanidade latente em todos nós, segundo o professor Bloch. A utopia, a esperança, o desejo de mudança, para além de aspectos fundamentais do comportamento humano, são também motores da transformação do universo das coisas criadas pelo homem. Para Marx, "o hiato entre o desejo e sua satisfação, o presente e o futuro, é finalmente superado". Assim, consoante Hobsbawn, "Os que realmente negam a utopia são aqueles que criam um mundo medíocre e fechado, do qual as grandes avenidas que se abrem para a perfeição estão excluídas: a burguesia".
Temos dois projetos para 2016, o primeiro seria o espetáculo "Gregório", a partir dos escritos de Gregório de Matos; o segundo seria "Que tempos são esses? Um ano com Brecht" tendo em vista os 60 anos de sua morte, neste projeto promoveremos palestras, filmes, leituras, e montaremos o espetáculo "A Exceção e A Regra". Já para 2017 pensamos nos "Dez dias que abalaram o mundo" devido ao centenário da Revolução Russa.
SOBRE O ARMAZÉM DA UTOPIA
O Armazém da Utopia já recebeu mais de 400 mil visitantes ao longo desses 5 anos em que foi gerido pelo Instituto Ensaio Aberto. Além dos nossos espetáculos e nossas exposições artísticas, promovemos uma série de cursos gratuitos - preferencialmente, mas não exclusivamente, para os moradores da região portuária - de formação e aprimoramento profissional em diversas áreas, como atuação, eletricista cênico, DJ, figurinos, maquiagem e outras. A partir desse curso e a partir da passagem de muitos atores pela Companhia, formamos um sem número de profissionais no Rio de Janeiro. Paralelamente, nosso Armazém também já sediou eventos como o Festival de Cinema, o Tudo é Jazz e foi a Casa Fenomenal da Nike. Além de inúmeros eventos gratuitos para os trabalhadores da região. Hoje a maior parte dos nossos atores - temos 11 integrantes no núcleo - vive unicamente do emprego no Armazém. Mantemos ali 30 empregos fixos. Em época de temporada empregamos pelo menos 60 pessoas no total. A arquitetura do Armazém preserva a estrutura original da memória histórica da região portuária e acreditamos que a mesma deva ser preservada. É um armazém centenário de cinco mil metros quadrados que conseguimos transformar, não só numa casa para o Instituto e a Companhia Ensaio Aberto, mas também uma casa da cultura e do povo.
Apesar de tudo isso, hoje a Companhia Ensaio Aberto está com uma ordem de despejo (obtida através de uma ação ilegal) para sair do Armazém 6, que deixaria, assim, de ser Armazém da Utopia. Este limiar foi promovido pela empresa privada Píer Mauá, apesar de aquele espaço ser público. Ao Píer, foi cedido em 1997 o armazém 1 para que eles investissem na região, não investiram alegando que um só armazém não gerava lucro suficiente para tal, então a empresa conseguiu anexar 2, o 3 e o 4 por meio de suas manobras políticas. Agora eles alegam que para poder investir verdadeiramente precisam também do 5 e do 6. Utilizarão o espaço para gerar lucro, provavelmente fazendo locações de eventos ou construindo centros comerciais, e possivelmente desfigurarão o caráter histórico daqueles armazéns. O mais irônico é que a empresa alegou que utilizará o espaço para promover cultura. O nosso prazo de sair do Armazém teoricamente já teria vencido, mas devido a avanços políticos que conquistamos, o processo está paralisado até que sejam tomadas decisões definitivas. De qualquer modo, a luta ainda não acabou, está longe disso e resistiremos.
Estamos agindo na via jurídica, tentando cassar a limiar, na via política, agregando aliados, e na via social através das manifestações e de uma possível ocupação no Armazém. Temos o apoio de diversas entidades públicas, personalidades artísticas e parlamentares. Mas precisamos muito também do apoio do povo, da população e da massa. Dentre os companheiros que estão do nosso lado, podemos citar Chico Alencar, Jean Wyllys, Jandira Feghali, Alessandro Molon, Luiz Sérgio, Glauber Braga, Lindbergh Farias, Wadih Damous, Renato Cinco, Roberto Amaral (que participou presencialmente do nosso ato) e o prefeito Eduardo Paes. Este declarou publicamente que o Porto Maravilha precisa do Armazém da Utopia, alguns dos outros parlamentarem vêm partipando ativamente na nossa luta. No nosso ato estiveram presentes representantes do MST, CUT, CTB, UNE, UEE, Juventude do PT, PCdoB, Ocupa Dops, Sindicato dos Metalúrgicos, Sindicato dos Portuários, Sindicato dos Médicos, Sindicato dos Músicos, Movimento Martins Sem Pena, AERJ, Levante Popular da Juventude, Juventude e Rebelião, Bloco Filhos da Martins, Bloco Portuário Vizinha Faladeira.
Essa semana que passou, contamos com mais de cem militantes do MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - ocupando o Armazém da Utopia em solidariedade à Companhia Ensaio Aberto. Foi especial para cada um de nós que dormiu, comeu, produziu placas para o ato contra o golpe, e conversou um pouco com cada um deles e passamos a conhecê-los por seus nomes e eles a nos conhecerem pelos nossos.
Agradecemos a todos os que estão conosco ativamente nessa luta. Pedimos que divulguem a situação, assinem nossa petição pública a favor da continuidade das atividades da Companhia Ensaio Aberto no Armazém da Utopia e fiquem atentos aos nossos informes.

Foto: Francisco Ramos Proner. Espetáculo SACCO E VANZETTI / temporada 2015
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